J-A 252, Jan–Abr 2015, p. 524–535

André Tavares / Rui Mendes (texto) / Valter Vinagre (fotografia)

UM OFÍCIO VULNERÁVEL

Igreja em Saint-Jacques-de-la-Lande, Rennes.
Projecto de Álvaro Siza

Aparentemente é simples: as paredes são em betão branco descofrado, as caixilharias padronizadas em perfil misto de madeira e alumínio, os pavimentos em pedra mármore ou resina epóxi, as paredes interiores em gesso cartonado. Parece não haver nada que possa enganar. Talvez por isso, o projecto da igreja de Rennes conduziu a um impasse: entregue o dossier de execução, os responsáveis pela construção informaram o autor do projecto de que “fazer a pormenorização estava fora de questão, isso deveria ficar a cargo de ‘especialistas’”. O arquitecto, ciente da sua responsabilidade, defendeu-se: “Se assim for, este projecto não se constrói.”

FORMA CLARA

A nave da igreja é um prisma cilíndrico inserido entre quatro torreões que conformam a volumetria paralelepipédica da construção. Há uma clareza na forma que torna explícita a natureza singular do espaço, quer na expressão exterior do edifício e na sua relação com os prédios de habitação envolventes (e a pequena torção que retoma o alinhamento de uma antiga capela adjacente), quer na ordenação dos movimentos e iluminação natural no interior. “Os apoios à teatralidade da missa”, na expressão de Siza, configuram uma segunda geometria interna de organização do altar, baptistério, posição da cruz e do sacrário. A rotação diagonal da posição da assembleia, a 45 graus relativamente ao eixo de movimento de chegada, confere a surpresa necessária para garantir a singularidade do espaço, e dirige a localização dos elementos em função dos torreões, que captam feixes de iluminação zenital que destacam o altar, o sacrário, o púlpito e a pia baptismal, e configuram o carácter sagrado do lugar. Os outros dois torreões são ocupados por escadas que conduzem ao nível da nave da igreja.

As salas de actividades da paróquia estão no piso térreo em continuidade visual e funcional com a praça contígua, a forma como um dos torreões se liberta do chão torna evidente o caminho de acesso à igreja.

O debate em torno da responsabilidade do projecto de execução e das soluções de pormenorização levaram o projecto a um impasse. Em causa não estava (apenas) o custo da obra, mas, sobretudo, a cadeia de comando e a posição da arquitectura no contexto da produção do espaço: o promotor da obra entendia que, uma vez delineadas as formas gerais do projecto, o arquitecto era um actor dispensável. Este entendimento, cada vez mais recorrente, corresponde a uma visão compartimentada do processo de concepção e construção, em que as vantagens da especialização são tidas como capazes de suprir a necessidade de coordenação – não tanto por critérios de economia de custos ou qualidade do resultado final, mas sobretudo por presumível eficiência processual e simplificação dos mecanismos de controlo de produção em obra.

Um projecto de arquitectura garante a inclusão de uma complexa teia de infra-estruturas e exigências técnicas numa solução integrada que corresponde a expectativas de custo. Fazer um projecto de arquitectura é fazer a coordenação dos múltiplos intervenientes na obra, uma integração que se desenvolve num quadro de referência de produção industrial, com limitações e possibilidades no que respeita a materiais adoptados, soluções técnicas específicas, fornecedores de equipamentos, etc. Para garantir a qualidade e a coerência do conjunto, é necessário programar as decisões que, pela organização presente da indústria da construção, antecedem inevitavelmente o momento do estaleiro. Assim se defendem as expectativas do dono de obra, interessado em obter garantias de desempenho e certificações de qualidade. Mais do que definir a forma ou a estrutura do espaço, o projecto de arquitectura tem como função gerir um conjunto de interesses (muitas vezes contraditórios) que não se alcança sem o rigor da pormenorização.

ARQUITECTURA E INDÚSTRIA
INDUSTRIALIZAÇÃO DA ARQUITECTURA

É certo que os arquitectos podem proceder de outras formas. A prática da construção transformou-se significativamente no último século e, hoje, já não existe a relação próxima entre operário e projectista que caracterizava as obras de meados do século xx. A forma das peças desenhadas e a complexidade dos projectos acompanharam essa transformação, com vantagens e desvantagens. Se antes o artesão tinha muito peso na obra, hoje a indústria da construção tomou essa posição. Os actuais meios de relação entre promotor, construtor, arquitecto, indústria e operários acrescentam mais dificuldades e peso ao projecto de arquitectura, particularmente nas características dos projectos de execução. É nesse contexto que a arquitectura é tomada como um luxo, apenas um problema de valor acrescentado. Siza tem presente este dilema: “Há um olhar sobre a arquitectura como sendo um assunto de elites, o arquitecto é tido como caro e caprichoso, quando o arquitecto é precisamente o contrário.” Siza faz-nos referência à generalização da arquitectura moderna no pós-guerra, assente sobre ideias de eficácia e eficiência da construção, com uma capacidade de relação com a indústria capaz de levar a mais população as virtudes da competência disciplinar. O mobiliário industrial é o exemplo mais contundente dessa possibilidade, e o preço actual das cadeiras tubulares de Marcel Breuer constitui a demonstração do paradoxo que a arquitectura atingiu. Qual a razão para que os produtos resultantes da inteligência do arquitecto sejam taxados com a mais-valia do design e tornados inacessíveis à maioria? É o sentido de economia de conjunto que confere ao desenho do arquitecto, e à sua competência coordenadora, um papel social relevante. Não se trata de uma autoria de luxo, ou de uma actividade para as elites, mas de um pensamento criador responsável e capaz de integrar desejos colectivos numa estrutura social e produtiva complexa.

O projecto da igreja de Rennes é uma demonstração cabal deste princípio. A simplicidade das formas e das opções construtivas relega para segundo plano a complexidade tecnológica e as condicionantes normativas que lhes estão subjacentes. Não se trata do apagamento do autor, nem da recusa da linguagem, mas da capacidade de essa linguagem se integrar sem sobressaltos numa cadeia produtiva socialmente estabilizada e responsável pela produção da maioria do espaço construído. Ou seja, trata-se de aceitar as condições do presente na expectativa de que o espaço produzido seja suporte de quotidianos qualificados, capazes de gerar a transformação do futuro. É uma arquitectura cuja mais-valia reside, precisamente, na sua banalidade – na capacidade de, sem ser luxo, gerar uma coerência que ultrapasse o mero somatório de contribuições. Daí a necessidade de não prescindir da coordenação de execução da obra, e do controlo da pormenorização e dos detalhes construtivos. A parafernália técnica e a especificidade da produção industrial são coordenadas em desenhos complexos dos quais emerge um espaço disponível para a fruição colectiva. Para a arquitectura não ser um luxo, tem de ser encarada como um processo de síntese integrado na estrutura de produção do espaço quotidiano.

ARQUITECTURA OU LUXO

Contudo, a tendência corrente tende a valorizar a arquitectura como um produto de luxo. Não faltam situações como a recusa de Rennes para aceitar o papel de coordenação da arquitectura. O arquitecto é chamado a contribuir como apenas mais um elemento numa cadeia de produção de valor, e não como um mediador social capaz de articular e atenuar as discrepâncias e desigualdades dessa cadeia de produção de valor. É esse o sentido de griffe que está subjacente em tantas operações de construção, em que o desenho do autor é apenas mero suporte, seja para a construção, seja para a promoção do espaço construído. É neste contexto que ganham relevância as “novas práticas” da arquitectura, que reclamam a possibilidade de uma acção directa do arquitecto e do seu saber junto dos diferentes actores da transformação do espaço. Em muitos desses casos o carácter interventivo e socialmente comprometido dos arquitectos é conseguido precisamente pela sua especialização e autonomia relativamente à estrutura hegemónica de produção. Mas não é essa a cultura de projecto de Álvaro Siza, para quem, reclamar a coordenação do projecto e o controlo do detalhe da obra é, no limite, reclamar o direito à arquitectura e recusar a sua “comodificação” como mero produto sujeito às leis de mercado.

Acresce a este conflito do tempo presente a progressiva burocratização da produção do espaço: mais um projecto de execução na gaveta não é novidade para ninguém. Particularmente no campo da obra pública, os sistemas de concorrência no acesso ao financiamento tendem a exigir projectos de execução esmiuçados ao detalhe antes mesmo de estar garantida a sua viabilidade financeira. Ou seja, os projectos de execução já não são guiões para conduzir uma obra, mas são a obra efectivamente configurada e resolvida até à sua conclusão, antes mesmo de ser iniciada. Naturalmente, isso exige um nível de empenho monumental, ao qual corresponde com frequência um nível de frustração equivalente. Como nos disse Siza a propósito dos seus muitos projectos de execução arquivados, “a arquitectura é um ofício vulnerável”. Talvez seja precisamente essa vulnerabilidade – a normalidade com que se arquivam milhares de horas de trabalho – que torna os promotores de obra susceptíveis a dispensar com ligeireza esse contributo fundamental. Afinal, se o trabalho do arquitecto se arquiva com facilidade, e se o construtor está disposto a assegurar a sua autorregulação (sabemos como), porque não confinar a arquitectura a um papel acessório na cadeia de produção de valor? Daí que, como nos confirma Siza, “o promotor seja a chave da qualidade da obra”. Ou seja, se cabe ao arquitecto reclamar e lutar pelo contributo social da arquitectura, o garante desse contributo ainda está nas mãos do promotor da obra.

A QUEM PERTENCE O FUTURO?

A reminiscência da forma de abside na conformação do espaço do sacrário no projecto de Rennes é um testemunho subtil e singular dos processos de transformação do mundo e da arquitectura. O conflito que descrevemos nestas páginas poderá vir a ter solução neste caso específico, mas é um conflito latente. Como tantas outras coisas a prática da arquitectura não vive de mudanças bruscas, mas progressivas. Há coisas que resistem, outras que prevalecem, outras ainda que perecem perante as evidências de transformação. Consta que depois de novos ajustes ao projecto, mais acertos e revisões, negociações delicadas e disponibilidades de parte a parte, esta obra poderá um dia avançar, e o projecto de arquitectura garantir a sua função coordenadora. Isso não invalida que a arquitectura e os arquitectos estejam, cada vez mais, a ser relegados para novas posições sociais e para outros contextos na cadeia de produção do espaço construído.

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