J-A 250, Mai — Ago 2014, p. 346 – 355

Mariana Pestana / Rui Mendes (texto) / Ivo Poças Martins (ilustração)

A PERTINÊNCIA DO EFÉMERO

Quando, no Verão de 2013, se construiu temporariamente a Casa do Vapor, houve uma grande euforia mediática em torno da pequena cabana de praia. O projecto era ambicioso e a presença da arquitectura confundia-se com as aspirações sociais dos envolvidos. A estratégia – usar uma construção modesta e efémera para desencadear um processo de dinamização, envolvimento social e conquistas efectivas – não era nova. Esta mediatização acendeu o debate acerca da pertinência da arquitectura efémera, do modo como contribui para uma expansão dos limites disciplinares da arquitectura e das suas respectivas competências profissionais.

A construção de obras que se prevê, à partida, serem temporárias, não é novidade. Sob múltiplas designações, o efémero foi sempre uma vertente relevante da arquitectura, e as obras temporárias tornaram-se perenes no imaginário colectivo. Ainda assim, é entendido como uma segunda arquitectura, uma arquitectura menor. O facto de constituir oportunidades para testar programas e tipologias, para experimentar novos espaços e dinâmicas sociais, faz do efémero um balão de ensaio do urbano. A abertura desse ensaio ao público produz espaços plurais, heterogéneos e participados de discussão acerca da cidade. O que leva este potencial latente a ser ainda ignorado pelas convenções da prática disciplinar?

***

UMA ARQUITECTURA NÃO SOLICITADA

São várias as denominações usadas para descrever o efémero no campo da arquitectura – de instalação a intervenção, passando por transitório e temporário. Estes e outros termos transportam significados e motivações para construir de um modo provisório, e também reflectem os modos como as construções “efémeras” se foram estabelecendo no território específico da arquitectura. O carácter mais evidente da arquitectura efémera consiste em preparar um lugar para uma actividade de curta duração. É uma arquitectura construída para depois ser destruída, motivada por diversos contextos – das exposições temporárias às celebrações – e encomendada por reis, municípios, promotores imobiliários ou até por ninguém. O que distingue “esta” arquitectura da “outra” é a sua temporalidade.

A dimensão funcional de um circo não esconde as suas qualidades poéticas e mágicas: uma tenda que se monta, desmonta e desaparece sem deixar rasto. Os mercados de levante e as feiras, as tendas de ocupação sazonal, os pavilhões de exposições temporárias são acontecimentos que, face aos índices de densidade que caracterizam a cultura urbanística contemporânea, evocam reservatórios de leveza na concepção dos lugares. Na história das cidades, a presença transitória de construções efémeras – muitas vezes cíclicas e capazes de se adaptarem progressivamente às variações das necessidades – foi sempre determinante na configuração das formas urbanas. Por outro lado, a arquitectura efémera permitiu campos frutíferos de investigação formal e tecnológica. Espaços e construções experimentais lograram a permanência, alterando os seus programas de uso provisório para usos mais perenes. Muitas obras sobrevivem simbolicamente para além do seu tempo de existência, perdurando em ilustrações e fotografias que circulam em geografias expandidas.

O crescente número de arquitecturas efémeras realizadas nos últimos anos é frequentemente associado à falta de encomenda que tem afectado a prática da arquitectura. Sem clientes, os arquitectos “não solicitados”, como lhes chamou Rory Hyde, decidem actuar sobre a cidade: procuram lugares, contactam proprietários, angariam fundos, convocam públicos. O sentido de crítica e a relação dialogante que estas práticas estabelecem com os lugares e os respectivos habitantes implicam uma forma de fazer plural, aberta e participada. Estas propostas introduzem programas que apelam a modos de participação específicos: momentos que, embora efémeros e “assumidamente de curta duração”, têm o potencial de se constituírem como experiências duradouras, instantes que fomentam o sentido de colectividade na construção urbana. O provisório toma a forma de um fragmento, uma parcela que se agrega a um universo existente. Nestas arquitecturas efémeras não se trata de preencher lacunas urbanas, não se trata de uma arquitectura de substituição, mas sim de uma arquitectura de possibilidades. O facto de aparecer e desaparecer responde a uma prática experimental cuja pertinência pode justificar a sua eventual permanência. Os artefactos efémeros podem produzir qualidades das quais a comunidade de utilizadores não quer abdicar. A arquitectura efémera tem capacidade de levantar questões sobre a ordem social, económica e política do lugar, e de contribuir para a estabilização de valores e expectativas que os sistemas de planeamento formal não são capazes de descortinar. É esta arquitectura efémera e “não solicitada” que nos interessa compreender melhor.

UM PROCESSO EM PROJECTO

Um modo de fazer rápido e experimental corresponde a uma lógica de apropriação compatível com os ritmos de vida dos utentes – ritmos que são muito diferentes das estratégias dos grandes planos e projectos, cuja pertinência é frequentemente ultrapassada pela passagem do tempo. Apesar de, em geral, constituírem pequenas construções temporárias, estas arquitecturas efémeras podem aspirar a ser instrumentos de participação e programação territorial de grande amplitude. Para se legitimarem, procuram afirmar-se publicamente através de programas e usos em contextos urbanos abertos à participação e ao escrutínio públicos, procurando formar núcleos abertos de comunhão social. Essa abertura à participação transforma os projectos em processos: a construção da obra é entendida como algo em discussão, indefinido, inacabado, um processo em desenvolvimento.

A arquitectura efémera é muitas vezes descrita como “instalação”, termo frequentemente complementado com um qualitativo – espacial, arquitectónica – que reitera a sua inscrição no campo disciplinar da arquitectura. A razão que justifica esse qualitativo talvez se encontre na origem do próprio termo, o campo das artes plásticas. De facto, a “instalação” situa-se no cruzamento dos dois campos disciplinares e define-se na relação que estabelece com o observador ou utente. Claire Bishop, autora do livro Installation Art, defende que a “arte-instalação” existe em função da ambiguidade entre o espectador “literal” – que visita o trabalho – e uma “ideia-modelo” presente na forma como o trabalho estrutura o encontro com o visitante. A instalação existe nestes dois níveis, dirigindo-se ao espectador como entidade individual, mas conjecturando um encontro idealizado. O grau de proximidade entre a ideia-modelo e o espectador literal pode servir de critério de julgamento estético da instalação: quanto mais perto a ideia se encontra da experiência real do espectador, mais bem-sucedida é a instalação. Talvez esta ideia prevaleça na produção da arquitectura de “longa duração”: parece haver consenso relativamente ao êxito de uma obra quando a intenção do autor coincide com a recepção dos utentes. Porém, na arquitectura efémera este consenso dilui-se, na medida em que, enquanto ensaio, celebra a potencial disjunção entre a intenção do autor e a recepção do utente: enquanto processo em desenvolvimento, ou projecto em discussão, permite divergências, oposições e ajustes.

UMA ARQUITECTURA EM TESTE

No campo da literatura, Roland Barthes desenvolveu uma teoria acerca da distância entre a intenção do autor e a recepção do leitor, um processo articulado de transição entre dois momentos: idealização e recepção de facto. Ou, para usar as suas palavras: origem e destino. A obra tem uma existência própria que não depende do papel do leitor, enquanto o texto é aberto à interpretação e, como tal, existe apenas no movimento da leitura. O texto privilegia o destino, enquanto a obra privilegia a origem. O texto tem um carácter produtivo, na medida em que empresta criatividade ao leitor. É possível transpor esta relação para o processo de produção da arquitectura. Ao contrário da arquitectura de “longa duração”, na arquitectura efémera o edificado consiste num teste, numa extensão do projecto do estirador para o terreno, aproximando o projecto do público. Através do ensaio, o projecto afasta-se da origem, de encontro ao destino, ao utente. Nesta medida, o efémero é uma espécie de arquitectura-texto, e operacionaliza-se como alternativa à arquitectura-obra. Essa condição permite-lhe ampliar o grau de partilha da sua autoria. Quando Santiago Cirugeda (ver caixa) sugere que as suas propostas estão disponíveis para quem queira “tomar responsabilidades”, põe em evidência o facto de que aquele que toma parte nas propostas se torna “responsável”. Quem toma parte não é um agente passivo, é um colaborador. Além disso, dado o carácter disruptivo das suas propostas, o utente é também testemunha, implicado. O envolvimento ultrapassa o carácter utilitário e unidireccional a que nos habituámos nas formas dominantes de construção da cidade, para alcançar uma dimensão crítica, comprometida, politizada. Quando “toma responsabilidade”, o utente entra em acção e emancipa-se.

UMA ARQUITECTURA MAIOR

O carácter não permanente da obra dá origem a momentos de adaptação que incluem a mudança como estrutura de pensamento do projecto. No mesmo livro em que defende uma coincidência entre projecto e utilização efectiva, Bishop advoga que a história da arte-instalação assenta em duas ideias principais: a activação e o descentramento do observador. Uma vez que a instalação é suficientemente grande para o observador poder lá entrar, a sua experiência é significativamente diferente da oferecida pela pintura ou escultura tradicionais. Em vez de representar textura, espaço e luz, a instalação apresenta esses elementos para serem experimentados directamente pelo observador. A necessidade de circundar ou atravessar as peças, de modo a experimentá-las, “acciona” o observador. Mais, as perspectivas múltiplas proporcionadas pela instalação subvertem a noção renascentista da perspectiva centrada a partir de um ponto de observação – na medida em que rejeitam a ideia de um lugar ideal a partir do qual se pode observar a peça. Esta perspectiva evidencia as qualidades que uma arquitectura efémera e participada pode conquistar e que têm sido matéria de trabalho para muitos arquitectos. A instalação privilegia múltiplas perspectivas, construídas a partir dos diversos pontos de vista do observador, ao invés de uma perspectiva dominante delineada pelo autor em projecto. De facto, é na disjunção entre a perspectiva do autor e as múltiplas perspectivas do observador que se enceta um diálogo produtivo e emancipador entre as duas partes. No campo da arquitectura, o efémero tem uma posição semelhante à da instalação no campo das artes plásticas, na medida em que abre novos territórios de interlocução.

Estas novas formas do efémero, que simultaneamente se aproximam e afastam dos seus antecedentes históricos, tanto da arquitectura como do urbanismo, estão a configurar novas ferramentas e processos de transformação da cidade. Desde os anos 50, a participação tem sido objecto de um amplo debate e experimentação no campo da arquitectura e urbanismo. Muito embora estes processos tenham aberto caminho a um diálogo com os futuros utentes dos espaços a serem construídos, as formas de auscultação (inquéritos, comissões, workshops, entre outros) tendem a acontecer no decurso do projecto, e a terminar antes da sua implementação. O carácter experimental da arquitectura efémera abre, neste sentido, novas vias de interlocução, promovendo diálogos com utentes, os quais ultrapassam o domínio técnico do projecto. Além da representação de elementos (através de desenhos e outros instrumentos de consulta pré-edificação), as arquitecturas efémeras permitem a apresentação pela construção dos mesmos, oferecendo a possibilidade da experiência directa. De certa forma, a arquitectura efémera pode definir-se no diálogo que enceta durante a sua vigência enquanto ensaio, em que o utente deixa de ser passivo e passa a ter um papel activo determinante, não apenas na fase de concepção (pré-edificação) mas também na construção e implementação do projecto (durante e após a edificação). E esse diálogo não se circunscreve à determinação da forma, podendo abarcar a definição do programa, a tipologia e a relação com o meio em que a obra se insere. O ensaio proporcionado pelo efémero pode, na relação que estabelece com a cidade e os seus utentes, provar a pertinência de um determinado programa ou revelar a inadequação de outro, justificar o reajustamento de uma implantação ou interrogar uma tipologia proposta.

O que é fundamental neste processo é o enunciado do projecto: trata-se de uma pergunta que o arquitecto materializa numa proposta. Isto permite conquistar para o ofício da arquitectura uma posição propositiva e crítica no processo de fazer cidade, actuando não apenas ao nível formal da resposta a um enunciado, mas na especulação sobre os destinos possíveis para a cidade. Ao constituir- -se como ensaio urbano, e gozando de uma velocidade que formas mais perenes de intervenção dificilmente conseguem alcançar, o efémero implica os habitantes nas decisões sobre a constante transformação da cidade. Neste cenário, a arquitectura distribui poder político, social e urbano. O efémero (por onde muitos arquitectos começam, com a ambição de partir para uma arquitectura mais perene), frequentemente visto e tratado como uma segunda arquitectura, como uma arquitectura menor, como uma categoria inferior da profissão, pode ser afinal estratégico, plural e maior. O que é passageiro, breve e fugaz é também uma prática em permanente afinação com o real.

http://arquivo2.jornalarquitectos.pt/a-pertinencia-do-efemero/