J-A 249, Jan — Abr 2014, p. 272-281

Rui Mendes (texto) / Valter Vinagre / André Cepeda (fotografia)

ARCA DE NOÉ

Casa criação da opacidade, Praia do Pópulo Pequena, São Miguel, Açores.
Projecto De Bernardo Rodrigues

PROJECTO, OBRA E PARTICIPAÇÃO

Os sistemas participativos, desde o projecto à construção, são ciclicamente redescobertos e valorizados. Por vezes, são um mecanismo eficaz para os arquitectos voltarem a pôr a mão na massa e, deste modo, também garantirem maior visibilidade e aceitação social. A participação permite quer a espontaneidade do arranjo in situ, valorizando a criatividade do mestre-de-obras, quer a versão do não-projecto, segundo operações meticulosamente preparadas para serem invisíveis e apagarem a marca do arquitecto. Neste amplo espectro, o que está em causa são os modos de afirmação dos processos da arquitectura, isto é, o modo como se prepara, aquilo que se convoca, o método e sistema de trabalho como motor dos fenómenos que darão origem ao projecto. É raro haver programa mais participado do que a casa própria, talvez por isso a habitação unifamiliar tenha sido sempre um espaço privilegiado de ensaio dos processos e métodos de projecto. Nesse contexto, esta casa na praia do Pópulo conta-nos uma história sobre o fragmento como matéria de inscrição numa determinada cultura de projecto.

A conclusão da obra da Casa do Voo dos Pássaros, também nos Açores, conferiu ao património de trabalho que o arquitecto Bernardo Rodrigues tem vindo a desenvolver um ponto de referência construído. A extensa e apologética recepção crítica à obra confirmou as possibilidades que as suas pesquisas formais, ainda em fase de projecto, esboçavam. A obra feita permite visitar os seus projectos com parâmetros que consolidam a dimensão arquitectónica das narrativas que antes se estabeleciam apenas na relação desenho-imagem. Quer isto dizer que, com a construção, as narrativas imanentes da exploração formal dos vários elementos do projecto são inapelavelmente convertidas em lajes e pilares, em portas e janelas, em muros e volumes. Em suma, a “poesia” do desenho transforma-se em qualidades ambientais e construtivas mensuráveis.

O projecto da Casa Criação da Opacidade, para a Praia do Pópulo Pequena, é um ensaio sobre um protocolo reconhecido pela prática: uma casa unifamiliar, inscrita numa parcela de um loteamento à beira-mar. É um modelo de intervenção que constitui um subuniverso peculiar no domínio do projecto, particularmente no caso de Bernardo Rodrigues, que nos foi habituando a aferir os seus registos (ou virtudes) através de formas produzidas entre topografia e contexto.

PROJECTO, OBRA E HISTÓRIA

Permanentemente em busca de significados para as suas acções e construções, os arquitectos habituaram-se desde sempre a convocar situações e signos da história da disciplina e das ideias para inventar soluções (e problemas). A batalha consiste, quase sempre, em sustentar uma hipótese sem elementos contraditórios ou desnecessários. Para Bernardo Rodrigues, a batalha do projecto parece ser a manutenção dos vários estímulos – do múltiplo e do uno, da forma e do informe – e fazer encaixar o todo em sintonia com os necessários atributos da encomenda: o cliente, o lugar (tão elástico quanto as dimensões do filme Powers of Ten, de Charles e Ray Eames) e os episódios do repertório de acontecimentos inscritos na história da arquitectura.

Nas palavras do arquitecto:

… as lages de pedra dos planaltos continentais, os detalhes na construção dos vãos do Scarpa, as meias alturas do Adolf Loos – o raumplan e a teatralidade interna, o banco corrido e a luz que vem sempre de fora –, o piso zero wrightiano encaixado no terreno são o ponto da história útil para deixar na casa como referência. E o sítio não é apenas o lote e o bairro, é a contingência de ilhéu enquanto habitante e matéria. Quer o cliente queira, quer não queira, o meu trabalho de arquitecto é dar resposta a isso – isso é parte do programa.

Nos mais importantes manifestos que, durante o século xx, instalaram “crises e continuidades”, a casa constituiu um território privilegiado de pesquisa e experimentação. As suas formas acusaram constantemente a ancoragem da arquitectura na realidade e reflectiram os modelos e axiomas do habitar que, a cada tempo, foram sendo consagrados e sucessivamente contestados. Perante esses debates, os arquitectos sempre foram manipuladores argutos de experiências que acumularam nas suas malas de ferramentas. O modo como operam, como fazem recurso a essas ferramentas e elegem como referência períodos históricos mais ou menos distantes, corresponde à possibilidade de reutilizar exemplos que se conhecem e identificam, fazendo apelo a valores e ideias que essas experiências representam.

Um dos ecos mais fortes que ficam do projecto da Casa Criação da Opacidade é o efeito caleidoscópio que as referências arquitectónicas vão construindo. Falando com o arquitecto percebe-se a deriva, no sentido de experiência que não é antecipada, o “aqui e agora”, como no universo situacionista. Dirá Bernardo Rodrigues que “depois de tanta inventividade não podemos descurar a forma, temos de trazê-la à vida”.

MÚLTIPLO E UNO. FORMA E INFORME

Um tecido múltiplo é aquele que nunca conseguimos desdobrar completamente, ou explicá-lo definitivamente, já que desdobrá-lo ou explicá-lo é apenas dobrá-lo ou complicá-lo de novo. Como esclarece John Rajchman no livro Constructions, o múltiplo não é aquilo que fragmenta ou arruína, pressupondo uma unidade perdida ou ausente, nem tão-pouco as suas divergências são um desmembramento de um organismo original.

Com raiz formal no arquétipo da casa, os três volumes que enquadram um novo cenário desde a praia do Pópulo denunciam a existência de uma topografia preparada que os sustenta e faz emergir. Os três prismas-casas confrontam o mar, reagindo aos canais de vistas das propriedades adjacentes, e são núcleos autónomos do programa: quarto grande + quartos pequenos + escritório. Os vãos desenhados na superfície dos primas e as deformações das inclinações da cobertura enfatizam a experimentação volumétrica. O que se retém com mais clareza é a sua condição de fragmento. No piso de entrada, os condimentos funcionais exacerbam a condição singular de cada espaço-função. Aqui, o todo é a figura do lote, onde, ao nível da rua, as peças do programa – fragmentos autónomos – se definem sem uma figura prévia que os una: sanitário e arrumo, cozinha, sala de estar, quarto, tratamento de roupa, garagem, arrumo, piscina, alpendre de jardim.

As medidas de cada unidade funcional, a dimensão e posição relativas, geram um espaço de relação. Este negativo gerado é da ordem do informe e pousa sobre um pódio que tudo estabiliza, e apenas uma barreira envidraçada delimita o interior e o exterior. Digamos que os três níveis da casa são universos paralelos que fazem da exaltação da junta um dos seus temas centrais. A terceira entidade é a laje empenada que tudo une (ou separa).

A laje funciona como filtro entre o mundo de cima – a praia – e o mundo de baixo – a intimidade do lote. Com uma configuração gestual e intuitiva é, porventura, o momento mais excêntrico do projecto. Definitivamente, é o elemento que concentra a história da junta como ligação entre mundos paralelos e distantes. O desenho encontra argumentos para se tornar contínuo, reagindo às várias pregas e ao movimento dos corpos em fuga. A relação entre a base e os três volumes, aparentemente suspensos, introduz ambiguidade e estranheza. Por um lado confere protagonismo aos três volumes na imagem do todo, mas não deixa revelar os momentos de suporte: os pilares, que são também fragmentos no conjunto da composição.

MUNDO ONDE TUDO É PRESENTE E PRESENÇA

A arquitectura não depende apenas das acções dos seus utilizadores – a arquitectura promove relações, de um modo objectivo e preciso, através das dimensões, das medidas, das distâncias entre elementos, da disposição, da organização e sequência de compartimentos e funções. A história das medidas e proporções é a história do projecto. A discussão sobre a substância que move o processo de pensamento de um projecto é vital para a disciplina da arquitectura. Esse debate informa o processo que se sabe fundamental para caracterizar as formas da arquitectura e, consequentemente, os seus significados. A linguagem não é apenas o “como se diz”, também é o modo “como se quer dizer, e fazer”. Se os arquitectos também se medem pelas formas que produzem há cada vez mais repositórios de modos de fazer. Os arquitectos, a cada projecto, afinam a sua Arca de Noé.

A Arca de Bernardo Rodrigues vai dando abrigo àquilo que encontra nos lugares e nos livros que consome. Por isso é uma cultura de projecto que se mantém viva e operativa, e que, de tempos a tempos, também nos permite tomar o pulso à arquitectura insular. Açores e Madeira têm já uma história de grande heterogeneidade, tão acidentada e extremada quanto as suas geografias. O repositório de Bernardo Rodrigues é mais um baú precioso – uma caixa de ressonância – que amplia o mapa de arquitectos activos e criadores nas ilhas do Atlântico.

Este projecto não terá obra. Como em outros trabalhos de Bernardo Rodrigues, nesta fase da história ainda a narrativa vai no adro. Uma das condições deste processo de desenho por adição de fragmentos é gerar sínteses provisórias ao longo do próprio processo que, um dia, se fixa, quando o betão tomar presa e a opacidade for garantida. A angústia do processo parece ser compensada pela adesão voluntária ao jogo de instalar junções para as coisas do mundo. Nesse sentido, o projecto da casa na Praia do Pópulo Pequena não anseia por conclusões, cria a opacidade. E nessa recolha de espécies para a arca, cada projecto amplia a dimensão dos possíveis, como as três casas suspensas a olhar a praia.

http://arquivo2.jornalarquitectos.pt/arca-de-noe/